quinta-feira, 7 de outubro de 2010

"Fé em deus e pé na tábua"


Depois de estudar o Carnaval, o futebol e o jogo do bicho, o antropólogo Roberto Da Matta descobre no comportamento doentio dos nossos motoristas – em seu desrespeito às leis e ao outro – uma explicação para o estilo de vida brasileiro.

Resumo da entrevista com o antropólogo Da Matta, realizada pela Revista Trip (Setembro/2010):



Para tentar compreender a epidemia de 40 mil mortes no trânsito por ano (o que nos torna o quinto pior país do mundo nesse quesito), o antropólogo foi até as raízes sociais do Brasil. Concluiu que nosso terrível comportamento nas ruas é fruto de uma sociedade que ainda não aprendeu a ser igualitária e a se libertar de seus traços aristocráticos. De uma mentalidade hierárquica ainda regida pela lógica do “Você sabe com quem está falando?”, segundo a qual obedecer a lei é sintoma de inferioridade – conforme Da Matta já havia demonstrado no clássico livro Carnaval, malandros e heróis, em 1979.


Você já estudou sociedades indígenas, carnaval, futebol, jogo do bicho. Por que decidiu fazer um livro sobre o trânsito agora?
Eu comecei a refletir sobre essas questões do trânsito quando fui estudar em Harvard, em 1963. Eu tinha dois colegas africanos. Um deles, da Nigéria, me disse um dia que tinha descoberto um lance fantástico e me chamou para ir à rua mais movimentada de Cambridge (Massachusetts) com ele. Cada vez que ele colocava o pé na faixa de pedestres, os carros paravam. Eu, como brasileiro, fiquei espantado também. Fizemos essa experiência umas cinco vezes. Foi aí que eu comecei a pensar no trânsito como um exemplo das diferenças culturais e como índice de civilidade. Muitos anos depois, em 1985, eu escrevi uma série de artigos para a página 2 da Folha de S.Paulo e, na falta de assunto jornalístico e da moda, resolvi falar do trânsito. Inventei um personagem, o brasilianista americano Richard Moneygrand, para falar por mim. E fiz o Moneygrand afirmar que as pessoas precisavam parar de falar de economia e olhar o trânsito para entender o comportamento de qualquer país, sobretudo o Brasil. Ao longo dos anos, eu voltei ao assunto algumas vezes nas minhas colunas no Estadão e O Globo, e recentemente o governo do Espírito Santo me chamou para coordenar uma pesquisa sobre educação no trânsito, e foi esse convite que deu origem ao livro Fé em deus e pé na tábua.
E por que esse título?
Porque esse ditado revela muito do estilo que nós, brasileiros, expressamos no trânsito. Temos essa crença de que somos protegidos por uma força superior, que nada vai nos acontecer de mal. E, se acontecer, existe uma vida depois da morte. Esse é o lado tradicional da história e do comportamento. E temos também o nosso lado moderno, amante da pressa e de correr riscos. Só que fazemos isso justificados por deus, de modo que podemos ignorar as leis, os outros e as nossas próprias vidas. Até nossas músicas populares legitimam nossa irresponsabilidade ao dirigir.
O que você descobriu sobre o comportamento dos brasileiros estudando nossos motoristas?
Que nosso comportamento terrível no trânsito é resultado da incapacidade de sermos uma sociedade igualitária. Nosso trânsito reproduz valores de uma sociedade que se quer republicana e moderna, mas ainda está atrelada a um passado em que alguns podiam mais do que muitos, como ocorre até hoje. Em casa, nós somos ensinados que somos únicos, especiais. Aprendemos que nossas vontades sempre podem ser atendidas. É o espaço do acolhimento, do tudo é possível por meio da mamãe. Daí a pessoa chega na rua e não consegue entender aquele espaço onde todos são juridicamente iguais. É doentio, desumano e vergonhoso notar que 40 mil pessoas morrem por ano no trânsito de um país que se acredita cordial, hospitaleiro e carnavalesco. No Brasil, você se sente superior ao pedestre porque tem um carro. Ou superior a outro motorista porque tem um carro mais moderno ou mais caro. O bêbado, o barbeiro, é sempre o outro. O motorista não consegue entender que ele não é diferente de outro motorista ou pedestre, que ele não tem um salvo-conduto para transgredir as leis. No Brasil, obedecer à lei é visto como uma babaquice, um sintoma de inferioridade. Isso é herança de uma sociedade aristocrática e patrimonialista, em que não houve investimento sério no transporte coletivo e ainda impera o “Você sabe com quem está falando?”.
Você fez o diagnóstico dos nossos problemas no trânsito. Mas você também aponta soluções?
A solução é falar mais em igualdade, discuti-la, ensinar igualdade. Não é só uma questão de fazer novas leis, de multar e reprimir. A gente tem que preparar a sociedade para internalizar as normas no seu comportamento. Quando tentaram obrigar as pessoas a usar cinto de segurança em 1985, não adiantou muito porque as pessoas tinham acabado de sair de uma ditadura e não queriam que o governo dissesse mais o que eles tinham que fazer. Mais tarde, nos anos 90, acabou dando certo porque as pessoas já estavam prontas para a lei. Mudaram por causa da lei? Claro. Mas porque viram que o cinto realmente protegia, o que deveria ter sido posto em primeiro lugar; a lei estava atrelada a uma prática social, em vez de estar contra ela.
Como explicar o caso da morte do filho da atriz Cissa Guimarães (skatista atropelado por um carro que fazia um racha num túnel em manutenção no Rio)?
O mais importante nessa situação é, imagino, outro ponto: para quem o motorista ligou depois do atropelamento? Não foi para o socorro ou para a polícia. Foi para o pai, que tentou subornar a polícia. Ele tentou fazer valer a força do dinheiro, mas, para sua surpresa, havia a força da fama, e isso equilibrou a questão. Se fosse um jovem de favela atropelado ou dirigindo seria diferente. Isso reforça que continuamos a viver na sociedade patrimonialista de que falava Gilberto Freyre. Só que eu diria mais: estamos numa sociedade “familística” e ainda largamente aristocrática.

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